"Esse babaca deve ser montado na grana", pensava ela ao conversar com o amante da vez. A principio parecia ser só mais um, mas conforme se desenrolava o falatório, ela percebeu que aquele tinha algo de especial. Diferente dos outros, ele queria levá-la para sua casa, e não a um motel ou a uma rua escura sem saída. A julgar pelo carro, podia dizer também, que a casa não devia ser um barraco. Inicialmente desconfiou, já que ninguém a levava para a própria casa, a não ser os políticos querendo causar inveja aos companheiros de partido em jantares nas suas humildes residências. Mesmo com a pulga-atrás-da-orelha, decidiu ir. Não conseguia resistir ao charme do cliente, muito menos ao dinheiro que ostentava ter.
Seu nome era Ulisses, e era o herdeiro de uma grande companhia de bancos do país. Era gentil, educado e até bem generoso, mas a falta de experiência com o amor na adolescência, o bullying que sofria constantemente na escola e a necessidade de afeto após a morte dos seus pais, lhe faziam ir atrás de companhia certas noites. Naquela noite seria Eva, a deusa dos olhos azuis como o mar, dos cabelos negros como a noite e seios voluptuosos como no mais perfeito dos sonhos. Seria ela a escolhida.
A casa (mansão seria mais adequado, mas enfim...) era o que Eva sonhava para ela e a irmã. Claro, somente sonhava. Sabia que nunca iria ter um lugar como aquele. Mas podia aproveitar aquela noite. Logo ao passar pela porta, se embasbacou ainda mais com o luxo daquela casa. A escadaria tinha formato em espiral, e a parede em volta dela não existia. No lugar havia uma grande janela de vidro, assim todos na rua podiam ver o que acontecia lá dentro. A cozinha era o pesadelo dos gordinhos. Geladeira prateada de duas portas, recheada das mais terríveis guloseimas e das mais afrodisíacas bebidas. A sala de estar tinha uma televisão, maior que as casas Bahia vendiam. Ela não fazia idéia de quantas polegadas tinha aquilo. Os mais diversos aparelhos ligados a ela. DVD, VHS, videogames, TV a cabo, TV digital. Era o sonho de qualquer ocioso.
Embora Eva estivesse ocupada admirando tudo, Ulisses já estava agindo. Buscou um vinho, arrumou o ninho, preparou a banheira. Foi uma das noites mais incríveis de Eva. Ele sabia trabalhar com o corpo dela. Conhecia cada canto sensível da sua pele, como se tivesse um manual de instruções. Horas e horas se foram em prazeres lícitos e ilícitos.
De manhã, ela acordou primeiro. Queria retribuir de uma forma melhor o que ele tinha feito. Queria preparar um café, um lanche, um futuro assalto. Foi até a cozinha então. O armário era lotado dos mais diversos tipos de pães. Na parede, os mais variados tipos de facas. Na geladeira buscou alguns frios. No armário um pacote de pão chique, marca estrangeira, e um tipo de doce que nunca tinha visto. Queria a maior faca e mais bela, para preparar um lanche divino. Queria a faca que não estava lá. Sentiu o sangue jorrando de suas costas. O traidor lhe encarava sério, sem todo aquele charme e amor da noite anterior. Parecia outra pessoa, e realmente era. Mesmo fraca, ela saiu correndo. Queria achar a saída daquele labirinto de prazeres e dores. A dor aumentava ainda mais conforme corria, mesmo assim não parava. Podia sentir a respiração dele no seu ouvido. Não sabia se era lembrança de ontem, ou fato de agora. Preferia não saber, tinha que correr. Correr era vital. "Puta que pariu. O desgraçado trancou a porta". Ele não corria. Conhecia aqueles corredores. Sabia os esconderijos. Só queria Eva, para poder continuar sua coleção de amores. Nenhuma das anteriores estava desgastada. Podiam praticar o amor sempre que quisesse. Mas agora queria carne fresca, nova. E ela era uma das mais perfeitas que já viu. Levou um susto. Ela tinha sumido. Ninguém sumia na sua casa. Teria que ter cuidado. Subiu a escadaria onde fizeram o show da noite anterior, para a pouca platéia na rua. A escada para o céu agora levava ao inferno. Por baixo de um degrau, ela lhe cortava uma perna. Por baixo de um degrau, ela lhe derrubou do seu trono. O poder que sentia agora era medo. A puta era mais esperta do que esperava.
Ela não queria machucá-lo, mas se obrigou. Sua irmã precisava dela. O corte não tinha sido profundo. Era só o suficiente para pará-lo pelo tempo que desse para ela fugir. Tempo cronometrado, certo, no ponto. Conseguiu escapar daquele antro de perdição. Conseguiu escapar com dinheiro, comida e prazer. Conseguiu escapar, pagando uma taxa de dor e outra de culpa. Ele era perfeito demais, devia saber no que ia dar. Agora tinha que correr. Sabia que aquela batalha tinha acabado, mas que a guerra tinha apenas começado.
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